Neste caso, ao mudarmos de escala de análise, e assumirmos a escala continental, devemos ter claro que não se trata somente de dar continuidade e fortalecer os acordos bilaterais de bacias hidrográficas transfronteiriças, mas pensar em estabelecer acordos em todas as bacias hidrográficas transfronteiriças, incluindo aquelas que nada tem sido feito.
Na escala de continente, devemos promover um diagnóstico planificado, do conjunto das bacias transfronteiriças, e em diversos temas que caracterizem uma mudança de abordagem para a gestão integrada de recursos hídricos, muito além da abordagem tradicional baseada no direito de águas internacionais. O Toolbox constitui uma ferramenta importante no suporte dessa evolução, e o Manual de Ensino do Toolbox vem a reforçar esse caminho, sugerindo 6 disciplinas básicas em torno das quais devemos organizar o desenvolvimento de capacidades. Mas especificamente na gestão transfronteiriça, e pensando na realidade latino-americana e especialmente na sul-americana, é preciso tornar esse diagnóstico mais detalhado, prestando atenção em temas normalmente esquecidos. 'Este diagnóstico da situação das bacias transfronteiriças deve mostrar os problemas ou conflitos existentes e também indicar as soluções em curso ou aquelas possíveis com base no conhecimento científico-tecnológico e a participação social, na busca da segurança hídrica.
Algumas questões necessárias a serem consideradas são: 1) interconexão entre águas superficiais e subterrâneas; 2) biodiversidade (espécies nativas e espécies exóticas invasoras) e áreas protegidas; 3) diferenças nos sistemas de direito e tráfico de animais selvagens através das fronteiras; 4) barragens e desvios de curso; 5) contaminação e poluição da água; 6) retiradas de água; 7) impacto dos cursos d'água e navegação; 8) turismo e pesca; 9) prevenção de desastres e riscos de inundação ou escassez de água; 10) mecanismos intergovernamentais para gestão transfronteiriça; 11) práticas culturais e comunitárias na fronteira; 12) aspectos extra-territoriais que influenciam a bacia como jatos de baixo nivel (rios voadores).
Esses temas chamam a atenção para possíveis impactos do alto curso sobre o baixo curso, e vice-versa, assim como a influência de processos como o desmatamento na Amazônia que pode impactar a bacia do Prata, afetando a pluviosidade nessa região.
Um outro aspecto importante a se considerar é que acordos transfronteiriços são normalmente celebrados entre Estados, e precisamos ouvir as vozes das comunidades locais, sobretudo quando se tratam de comunidades tradicionais/indígenas. Há valores espirituais e práticas locais de gestão de águas que são de caráter local e muitas vezes os acordos celebrados em nível de Estado não refletem preocupações ou interesses das comunidades que efetivamente vivem na fronteira ou nas bacias transfronteiriças.
O diagnóstico planificado também deve levar em consideração a identificação de vazios de dados, pois sem uma série histórica e dados confiáveis, não se pode fazer um planejamento seguro e seu monitoramento.
Sobre isso, retomando o tema da institucionalidade regional, cabe chamar a atenção para a existência de uma assimetria (ou inequidade), e os participantes dessa institucionalidade regional devem reconhecer essa assimetria e trabalhar para diminuí-la: os países mais bem estruturados vão auxiliar os países menos estruturados? Poderemos pensar numa ação coletiva para implantar uma rede de coleta de dados hidrometeorológicos e de monitoramento, independente da capacidade econômica do Estado de implantar e mantê-las?
Essa é uma das características de solidariedade que acompanha a palavra-chave confiança que se destacou ao fim do I SIMPOSIO INTERNACIONAL DE AGUAS TRANSFRONTERIZAS EN AMÉRICA LATINA. Para haver confiança, é preciso ter solidariedade, mútua compreensão, e experiência de convivência para construir a confiança. Mútua compreensão passa por criar as bases técnicas e científicas para compreender os fenômenos naturais e sociais e seus fundamentos. Por exemplo, gestão transfronteiriça requer um nivelamento dos parâmetros de avaliação de impactos ou de qualidade da água, que normalmente são diferentes entre os países. Para buscar um consenso, não é preciso impor seus parâmetros e obrigar o outro a se adequar inclusive mudando suas leis: devemos buscar compreender os fundamentos de cada escolha, e estabelecer um diálogo e denominadores comuns aceitáveis com base na racionalidade.
Além disso, precisamos construir um processo colaborativo de trabalho, reunindo uma comissão técnica com experts de cada país, que inclusive ajudem a formar uma geração com mais conhecimento e capacidades, inclusive conhecimento de toda o continente e não só da realidade de seu país. Essa comissão técnica é que ajudará a dirimir diferenças, estabelecer mútua compreensão e desenvolver capacidades, de forma mais homogênea em todos os países.
Finalmente, para isso tudo precisamos de recursos financeiros, e para isso também podemos nos aproveitar de um contexto favorável mais além dos ODS: estamos entrando este ano na Nova Década Internacional para Ação (2018-2028) “Água para o Desenvolvimento Sustentável” deliberada pela Assembléia Geral/Resolução A/RES/71/222. Isso abre uma janela de oportunidades em torno do compromisso político das Nações Unidas com o tema da água, que é específico e do nosso campo, muito mais do que os ODS que são amplos e atingem todos os setores. Mais do que isso, a resolução da ONU que institui essa década direciona o foco para a produção de conhecimento. Queremos dizer que GWP com o seu Toolbox mostra que seu DNA é o desenvolvimento de capacidades, que GWP é uma organização-rede baseada no conhecimento. Nossa história de desenvolvimento de capacidades permite exercer um protagonismo nessa nova década e nossa experiência de integração e cooperação regional pode trazer grande contribuição para a estruturação de uma integração tanto sul-americana como latino-americana para gestão compartilhada e sustentável de águas transfronteiriças.
Prof. Carlos H. Saito, Presidente de GWP Sudamérica Palestrante y panelista do evento